"O
palavrório sobre o que legaremos aos nossos
filhos será vazio, se nossas atitudes forem
egoístas, burras, grosseiras ou maliciosas"
Uma importante empresa financeira me chamou para
falar com alguns clientes. Não sobre finanças,
pois eu os arruinaria, mas sobre algum tema "humano"
– no meio da crise queriam mudar de assunto.
Uma sugestão de tema que me deram foi:
"O que esperamos de nossos filhos no futuro".
Como acredito que pensar é transgredir,
falei sobre "o que estamos deixando para
nossos filhos". Acabamos nos dando muito
bem, a excelente platéia estava cheia de
dúvidas, como a palestrante.
O mundo avança em vertiginosas transformações,
e não é só nas finanças
ou economia mundiais: ele se transforma a todo
momento em nossos usos e costumes, na vida, no
trabalho, nos governos, na família, nos
modelos que nos são apresentados, em nossa
capacidade de fazer descobertas, no progresso
e na decadência.
O que nos enche de perplexidade, quando o assunto
é filhos, é a parte de tudo isso
que não conseguimos controlar, que é
maior do que a outra. Se há 100 anos a
vida era mais previsível – o pai
mandava e o resto da família obedecia,
o professor e o médico tinham autoridade
absoluta, os governantes eram nossos heróis
e havia trilhas fixas a ser seguidas ou seríamos
considerados desviados –, hoje ser diferente
pode dar status.
Gosto
de pensar na perplexidade quanto ao legado
que podemos deixar no que depende de nós.
Que não é nem aquele legado
alardeado por nossos pais – a educação
e o preparo – nem é o valor
em dinheiro ou bens, que se evaporam ao
primeiro vendaval nas finanças ou
na política. A mim me interessam
outros bens, outros valores, os valores
morais. O termo "morais" faz arquear
sobrancelhas, cheira a religiosidade ou
a moralismo, a preconceito de fariseu. Mas
não é disso que falo: moralidade
não é moralismo, e moral todos
temos de ter. A gente gosta
de dizer que está
dando valores |
|
aos filhos. Pergunto: que valores? Morais, ora,
decência, ética, trabalho, justiça
social, por exemplo. É ótimo passar
aos filhos o senso de alguma justiça social,
mas então a gente indaga: você paga
a sua empregada o mínimo que a lei exige
ou o máximo que você pode? Penso
que a maioria de nós responderia não
à segunda parte da pergunta. Então,
acaba já toda a conversa sobre justiça
social, pois tudo ainda começa em casa
e bem antes da escola.
Não adianta falar em ética, se vasculho
bolsos e gavetas de meus filhos, se escuto atrás
da porta ou na extensão do telefone –
a não ser que a ameaça das drogas
justifique essa atitude. Não adianta falar
de justiça, se trato miseravelmente meus
funcionários. Não se pode falar
em decência, se pulamos a cerca deslavadamente,
quem sabe até nos fanfarronando diante
dos filhos homens: ah, o velho aqui ainda pode!
Nem se deve pensar em respeito, se desrespeitamos
quem nos rodeia, e isso vai dos empregados ao
parceiro ou parceira, passando pelos filhos, é
claro. Se sou tirana, egoísta, bruta; se
sou tola, fútil, metida a gatinha gostosa;
se vivo acima das minhas possibilidades e ensino
isso aos meus filhos, o efeito sobre a moral deles
e sua visão da vida vai ser um desastre.
Temos então de ser modelos? Suprema chatice.
Não, não temos de ser modelos: nós
somos aquele primeiro modelo que crianças
recebem e assimilam, e isso passa pelo ar, pelos
poros, pelas palavras, silêncios e posturas.
Gosto da historinha verdadeira de quando, esperando
alguém no aeroporto, vi a meu lado uma
jovem mãe com sua filhinha de uns 5 anos,
lindas e alegres. De repente, olhando para as
pessoas que chegavam atrás dos grandes
vidros, a perfumada mãe disse à
pequena: "Olha ali o boca-aberta do seu pai".
Nessa frase, que ela jamais imaginaria repetida
num artigo de revista ou em palestras pelo país,
a moça definia seu ambiente familiar. Assim
se definem ambientes na escola, no trabalho, nos
governos, no mundo. Em casa, para começar.
O palavrório sobre o que legaremos aos
nossos filhos será vazio, se nossas atitudes
forem egoístas, burras, grosseiras ou maliciosas.
O resto é conversa fiada para a qual, neste
tempo de graves assuntos, não temos tempo.
|