vivem de bicos, isso é aqueles que trabalham.
Minha mãe é empregada doméstica e trabalha numa
casa de família que lhe paga 200 reais por mês;
meus irmãos mais velhos, que são dois, catam latas
e papelões nas ruas; meus outros irmãos vendem
balas nos sinais de trânsito e o mais novinho,
que tem apenas dois anos às vezes tem que esperar
em casa, sozinho para que alguém retorne da vida
dura e lhe oferecer algum tipo de conforto.
Meu pai saiu
de casa para ir para São Paulo e disse que um
dia voltaria com dinheiro para nos ajudar, mas
isso já faz alguns anos e até agora, nem dinheiro
nem notícias dele; eu espero que ele esteja bem
e com saúde, mas é melhor ele ficar por lá já
que se voltar sem aquele dinheiro da ajuda, será
mais uma boca para dividir os 600 reais que somando;
ganhamos todos juntos.
A vida é muito dura Senhor Carlos e eu imagino
que o Senhor jamais tenha passado por isso que
estamos passando. Ninguém da minha família teve
a condição de estudar para ser alguém na vida;
sabemos assinar apenas o nome e conhecemos umas
bobagenzinhas que estas escolas públicas ensinam.
Faz perto de um ano que eu conheci umas moças
lá na escola que andava arrumadinhas, com roupas
de butique, sapatos da moda e bem perfumadas.
Perguntei o que os pais delas faziam e elas me
disseram que trabalhavam e elas próprias compravam
tudo aquilo. Depois de alguns papos eu descobri
que elas eram prostitutas e que ganhavam bem todos
os dias, então passei a querer também trabalhar
com elas, mas elas disseram que eu era “de menor”.
De tanto insistir acabei conhecendo o patrão delas
e ele me deu uma carteira de identidade falsa
com a idade de 18 anos e me deu emprego.
Hoje eu sou prostituta também! Começo no serviço
às 6 horas da noite numa casa que recebe muita
gente importante, bem distante da cidade. Nesta
casa aparece de vez em quando uma gente de paletó
e gravata que minhas amigas dizem que são os coronéis
da cidade, mas eu não os conheço; vem gente suja
e bêbada também, mas eles têm o que o patrão quer:
que é dinheiro, isso faz a nossa alegria também.
No final da noite, se eu consigo me deitar com
dois destes homens que vão lá à casa, ganho 50
reais, mas tenho que pagar pelo aluguel do quarto
e pela comida. Também ganho comissão pelas bebidas
que eles consomem, mas só se não for cerveja;
se for uísque eu ganho 2 reais por cada dose e
se for vinho espumante eu ganho 5 reais por cada
garrafa, então, somando tudo, no final do mês
me sobra uns 300 reais livres que eu sempre mando
parte para minha mãe, para ajudar nas despesas
de casa e na alimentação da minha filhinha; o
pai dela eu não sei quem é e mesmo que soubesse
eu acho que ninguém me ajudaria.
Para eu escrever esta carta uma pessoa da Prefeitura
foi quem me pediu por que ela tava com uma coisa
que o senhor tinha escrito num jornal daqui, então
eu espero que isso que estou escrevendo te ajude
a fazer um apelo aos políticos para que não acabem
com os “bregas” (bordeis) desta cidade já que
é deles que muitas de nós conseguimos ganhar dinheiro
para poder pelo menos comer e também ajudar nossa
família.
Vocês falam mal de nós e querem acabar com nosso
trabalho, mas jamais se lembram de nos ajudar;
aqui nesta cidade, gente igual a mim e minhas
amigas comem o pão que o Diabo amassou; ninguém
nos dá emprego, então, para nós mulheres o que
resta é ser puta. Dói dizer isso, mas é a verdade.
Minha mãe e meus irmãos sabem o que faço e ele
nem ligam porque eu ajudo em casa mesmo não morando
lá.
Vou juntar dinheiro na poupança e comprar uma
casa para mim e para minha mãe; quero sair desta
vida sim, mas não agora; vou aproveitar enquanto
sou nova e posso trabalhar assim; depois que eu
ficar velha ninguém mais vai querer que eu faça
isso, esta é a verdade, então Senhor Carlos, pare
de escrever sobre nós e ao invés disso, ajude-nos
com ações que nos permita trabalhar e viver com
dignidade.
As palavras utilizadas não foram estas, da mesma
forma que o nome dela não é Patrícia, mas a carta
que eu recebi no ano passado após publicar um
artigo sobre a prostituição infantil dizia em
palavras mal escritas um teor similar ao que pude
traduzir acima.
Uma Assistente Social de Recife me enviou esta
carta de uma garota de 16 anos, hoje com 17, que
tinha uma filha e assumia que era prostituta de
modo quase honroso; uma vergonha nacional que
cresce todos os dias e que eu jamais me cansarei
de insistir em denunciar.
Longe de qualquer sensacionalismo barato a carta
de Patrícia não me chegou como crítica ou ataque
pelo que escrevi; o que notei na carta, que aliás,
só está publicada parte dela e que me chegou com
nome completo e endereço, foi um apelo dramático
para que os olhos dos que se dizem guardiões dos
destinos sociais do Brasil se voltem para este
problema grave, sério e de conseqüências mórbidas.
As crianças do Brasil estão aprendendo a utilizar
seus corpos em desenvolvimento para a utilização
do meretrício que é crime e um forte agente causador
da proliferação de doenças graves como AIDS, cancro
mole, gonorréia e outras DSTs. Este quadro atual
mancha a honra não só de nossas crianças indefesas,
mas de um país como um todo de modo que nos posicionamos
como um dos mais atrozes e desumanos do planeta.
Patrícia, pelo que pude traduzir em sua carta,
queria apenas um trabalho para seu pai, seus irmãos
mais velhos e sua mãe; se isso fosse possível,
talvez ela estivesse em casa cuidando de sua filha
e ajudando a cuidar de seus irmãos mais novos;
ela queria apenas um trabalho, fosse ele qual
for, mas que fosse digno e muitas vezes esta dignidade
lá pelas bandas do Nordeste é ter a CTPS assinada
e nada mais.
É muito pouco para se sonhar, mas este pouco que
está cada vez mais distante da realidade de quase
metade de nossa população acaba se tornando um
sonho, um anseio da maior parte. Com o distanciamento
cada vez mais claro deste sonho, restam as nossas
crianças, principalmente as mocinhas, a vida dura
do ingresso a prostituição.
Da última vez que escrevi sobre o tema, falei
sobre a minha experiência árdua em tentar fechar
duas casas de prostituição do Ceará, registre-se
em vão; falei do que vi durante bom tempo que
passei na capital cearense, tendo que me acostumar
a ver garotinhas de menos de 12 anos perambulando
pelas ruas da Praia de Iracema após a meia noite,
sendo muitas vezes incentivadas pelos próprios
pais; aquilo me deixou doente e envergonhado,
principalmente porque eu estava e fiquei impotente;
porque eu vi claramente que os poderosos de Fortaleza
queriam que aquilo se perpetuasse e fosse incorporada
a cultura da cidade; a cultura de oferecer suas
meninas para os turistas imundos que chegavam
da Europa.
Não há muito que comentar sobre o caso de Patrícia;
o problema dela é o mesmo de milhares de outras
que passam pelo mesmo ou pior; meninas que são
obrigadas por crápulas facínoras a fazer sexo
o dia inteiro com todo tipo de gente, do mais
medíocre ao mais imundo; sim, porque neste meio
não há santos, não há bem intencionados ou benfeitores.
Uma parte que preferi não divulgar da carta de
Patrícia, ela afirma que na casa onde trabalha
há freqüência de policiais, eclesiásticos, políticos
e até de gente ligada à justiça pernambucana e
isso não é exclusividade de Pernambuco; o Brasil
inteiro, do Arroio ao Chuí permite este tipo de
monstruosidade.
Lugar de criança é na escola, de preferência estudando;
lugar de criança é brincando, de preferência com
brinquedos convencionais de crianças; lugar de
criança a noite é perto dos pais, de preferência
com afeto, com carinho, com amor. Criança não
pode pedir esmolas, criança não pode transar;
criança não pode trabalhar com algo que lhe tire
a magia da infância. Infelizmente muitas precisam
trabalhar e isso até tolera-se num país sem rédeas,
sem mandatários sérios e sem uma justiça que se
volte para o social, mas jamais aceitar que estas
crianças se prostituam em nome da comida ou do
teto; isso é lastimável, deplorável, catastrófico,
desumano e deveria ser rigorosamente coibido,
mas não é!
Quero pedir desculpas a todas as Patrícias se
por acaso não consigo através de ações concretas,
resolver o problema de todas elas; mas a minha
única arma hoje é a palavra e não medirei esforços,
hoje e todos os dias, para que meus artigos cheguem
ao maior número de pessoas. Tenho certeza que
um dia, um destes artigos tocará a sensibilidade
de apenas um ser humano e se ele fizer com que
apenas um destes homens que pagam e patrocinam
o sexo de prostituição na infância e adolescência,
com certeza já terei um grande pagamento por todos
este tempo que escrevo e insisto em denunciar.
Eu não ganho um centavo sequer pelos textos que
publico (nem estou cobrando); não pretendo ser
político, muito menos galgo uma vaga de santo
na Praça de São Pedro; algumas vezes sou processado
na justiça por algumas verdades que escrevo e
que fazem doer em alguns medíocres e tenho que
contar com a sensibilidade de meus amigos advogados,
mas reafirmo que jamais me cansarei de denunciar
e de mostrar aos meus milhares de leitores o que
se passa em algumas camadas da sociedade, seja
num hotel, seja na rua, seja num prostíbulo; encerrarei
minha tarefa de escrever apenas no dia que o Grande
Mestre me chamar ou no dia que me calarem definitivamente!
Hoje, no Dia Internacional de Combate a Prostituição
Infantil, além deste texto publicado, me coloco
na condição de reflexão profunda, rogando ao Criador
que proporcione mais inteligência ao homem para
que eles cada vez mais se desviem dos caminhos
de nossas crianças! Escrevo como jurista, como
jornalista e agora como Membro da Anistia Internacional!
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
www.irregular.com.br
Fotos: Anistia Internacional
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