Maria
Aparecida evita olhar para sua imagem refletida
no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana
saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria
esquecer o que sofreu durante um ano de detenção.
Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de
Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar
um xampu e um condicionador que, juntos, valiam
24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por
seu “crime”: ficou cega do olho direito.
Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada
doméstica foi detida em flagrante em abril de
2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não
deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada
diretamente para a prisão, onde passou a dividir
uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jovem
não dormia durante a noite, comia o que encontrava
pelo chão, urinava na roupa.
Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto,
a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo
na área das detentas. Uma delas resolveu jogar
água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura
do gás com o líquido fez com que seu olho fosse
sendo queimado pouco a pouco. "Parecia que
tinha um bicho me comendo lá dentro", conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não aguentavam
mais os gritos de dor e os barulhos provocados
pela moça, ela foi transferida para o "seguro",
onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria
Aparecida passou a apanhar dia e noite. "Eu
chorava muito de dor no olho, e elas começaram
a me bater com cabo de vassoura", relembra,
emocionada. Somente quando compareceu à audiência
do seu caso, sete meses depois de ter sido detida,
sua transferência para a Casa de Custódia de Franco
da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada.
Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do
olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou
a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a
advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente
do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).
Sonia entrou com um pedido de habeas corpus no
Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado.
Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça
(STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade
provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido
presa por causa de 24 reais.
A advogada também entrou com um pedido de extinção
da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”,
aplicado quando o valor do patrimônio furtado
é tão baixo que não vale a pena a justiça dar
continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o
processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua
em liberdade provisória.
A situação indigna Gisleine. "É um descaso
muito grande. Já era para esse julgamento ter
acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse
xampu que não chegou a utilizar", critica.
"Tem gente que não precisa estar na cadeia.
Existem penas alternativas e o caso dela não seria
de prisão, mas sim de internação, já que desde
os 14 anos ela toma medicação controlada",
afirma.
Justiça
seletiva
O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido
pela advogada Sonia Drigo para que Maria Aparecida
respondesse ao processo em liberdade foi solicitado
e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas
um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi,
proprietária da butique de luxo Daslu, em São
Paulo, condenada em primeira instância a uma pena
de 94,5 anos de prisão. Três pelo crime de formação
de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação
fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por
descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica.
Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz
que a Daslu deve aos cofres públicos 1 bilhão
de reais. Os representantes da empresa contestam
esse valor, mas afirmam que já começaram a pagar
as dívidas. A sentença inclui ainda o irmão de
Eliana, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, diretor
financeiro da Daslu na época dos fatos, e Celso
de Lima, dono da maior das importadoras envolvidas
com as fraudes, a Multimport.
A prisão de Tranchesi foi consequência da Operação
Narciso, desencadeada pela Polícia Federal em
conjunto com a Receita Federal e o Ministério
Público em julho de 2005, com o objetivo de buscar
indícios dos crimes de formação de quadrilha,
falsidade material e ideológica e lesão à ordem
tributária cometida pelos sócios da butique.
De acordo com juristas e analistas ouvidos pela
reportagem da Caros Amigos, a diferença de tratamento
dispensado a casos como o de Maria Aparecida e
Eliana Tranchesi acontece porque, embora na teoria
a lei seja a mesma para todos, na prática, ela
funciona de forma bem distinta para os representantes
da elite e para os pobres.
Sonia Drigo ressalta, entretanto, que não existe
uma justiça para ricos e outra para as camadas
mais humildes. “Ela é uma só, mas é aplicada diferentemente”.
Segundo o cientista político e professor da Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas), Andrei Koerner,
a questão do acesso à justiça no Brasil é histórica.
"Sempre houve uma grande diferença de tratamento
dos cidadãos de diferentes classes sociais pelas
instituições judiciárias".
Ele explica que dentro do judiciário há distinções
no andamento e efetividade dos processos, que
variam com a classe social dos envolvidos. Segundo
ele, um dos maiores problemas do poder é sua morosidade.
No entanto, "isso não significa que os processos
dos ricos são mais ágeis. Depende dos interesses
e efeitos produzidos pelos processos". Ou
seja, a Justiça, quando interessa às classes dominantes,
também pode ser lenta. Como exemplo, o professor
cita "o longo tempo de uma execução para
cobranças de dívidas de impostos, de contribuições
previdenciárias".
Em relação a casos penais, isso também ocorre,
"como quando uma pessoa com muitos recursos
financeiros é acusada – Paulo Maluf, por exemplo.
Nesse caso, ela é capaz de bloquear o andamento
do processo até que a pena esteja prescrita. A
agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma
pessoa também varia, de acordo com sua classe
social", aponta Koerner. A diferença é que
"um acusado de classe menos favorecida não
será capaz de usar as oportunidades permitidas
pelo processo".
O juiz criminal Sérgio Mazina, presidente do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), acredita
que o sistema judiciário reserva, aos pobres,
o espaço da justiça criminal. "Essa desigualdade,
mais servil aos interesses dos poderosos e mais
repressiva em relação aos mais necessitados, acirra-se
ainda mais em países como o Brasil, que tem uma
sociedade baseada num sistema escravista".
De acordo com Roberto Kant de Lima, Professor
Titular de Antropologia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), existem “moralidades” distintas
por parte dos agentes de segurança pública e justiça
criminal no tratamento à criminalidade, quando
ela está ligada ou não ao patrimônio. “Os latrocínios
[roubo seguido de morte], por exemplo, são julgados
por um juiz singular, enquanto que os outros homicídios
são julgados pelo júri popular’’. Segundo o professor,
que coordena o Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia, pode-se concluir que as várias “moralidades”
afetam desigualmente a aplicação da lei, sendo
que algumas dessas desigualdades estão registradas
em tipos processuais explícitos, enquanto outras,
não.
Mazina sustenta que a justiça brasileira é constituída
para não ser popular. Em sua avaliação, desde
a formação da legislação, há uma preocupação muito
maior com a preservação patrimonial em detrimento
da proteção da integridade física. Isso contribui,
portanto, para a criminalização das camadas mais
baixas da população, mais propensas, por sua condição
social, a cometerem delitos contra o patrimônio.
"Há um acirramento da legislação para os
crimes cometidos pelos pobres. O código penal
brasileiro criminaliza a pobreza", denuncia
Mazina.
Sonia Drigo acredita que há uma dupla criminalização,
pois "a exclusão já é uma criminalização.
Isso me lembra a diferença de tratamento dado
para um sem-teto e para aquele que mora numa mansão.
Vamos penalizar aquele que não tem endereço, nem
carteira assinada. Então, vamos bater nele, torturá-lo
porque não teve condições de estudar e trabalhar".
O caso da ex-empregada doméstica Maria Aparecida
não deixa dúvidas a respeito de como isso acontece
na prática. Na casa de sua irmã, em Taboão da
Serra, na Grande São Paulo, a moça pouco fala.
Mantém-se de cabeça baixa, cabelos longos e negros
escondendo parte de seu rosto. Às vezes, esboça
um sorriso ingênuo. Sua expressão é de uma menina.
Quando faz um balanço da prisão, da tortura e
da perda da visão, muda a fisionomia: "Tudo
isso por conta de um xampu. Minha vida acabou".
Maria Aparecida compara-se com Eliana Tranchesi.
"Eu peguei só um xampu e fiquei lá. Ela,
cheia de dinheiro, saiu logo, e teve do bom e
do melhor".
A alegação que foi dada à família de Maria Aparecida
para a perda da visão foi de que a jovem havia
batido com o rosto no trinco de uma porta. "Mas
isso é mentira, não tinha porta com trinco nenhum
lá", afirma Gislaine. Quando a moça foi transferida
da cadeia para o manicômio em Franco da Rocha,
fizeram um exame de corpo de delito, que atestou
lesões corporais leves. "Ela perdeu um órgão
vital, não a socorreram. Gostaria de saber o que
seria a lesão corporal grave, entregá-la num caixão
para a família?", questiona Gislaine, indignada.
Propriedade,
o grande valor do direito penal
De acordo com a juíza Kenarik Boujikian Felippe,
integrante da Associação de Juízes para a Democracia
(AJD), "a propriedade é o grande valor do
direito penal. Basta ver que a pena do furto é
maior do que a pena de tortura. Para o direito
penal, pegar algo da sua bolsa é mais grave do
que a tortura", avalia. Ou seja, para a justiça
brasileira, é mais importante proteger um xampu
e um condicionador de alguma loja que a integridade
física de Maria Aparecida.
A "sagrada" defesa da propriedade privada
acaba sendo utilizada como argumento para criminalizar
movimentos sociais, como no caso das organizações
como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto (MTST). "Na medida em que esses movimentos
possam a reivindicar uma redistribuição de riquezas,
há sua criminalização. Se tiverem apresentando
um reclamo como o da proteção do meio ambiente,
não há necessidade de criminalizá-lo. Mas se eles
questionam a estrutura econômica da sociedade,
há uma propensão à sua criminalização".
Para Kenarik, a diferença de tratamento dispensado
a ricos e pobres pode ser atribuída, ainda, a
um "judiciário extremamente conservador,
ideológico, que acha que pobre, por sua natureza,
tem que estar preso. Ninguém assume isso, mas
existe. É algo que vem de 500 anos de historia".
Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam
que, muitas vezes, os magistrados estão imbuídos
de preconceito quando vão lidar com pessoas das
classes menos favorecidas. De acordo com o defensor
público Rafael Cruz, a exigência de endereço fixo
e de trabalho para conceder liberdade provisória
a uma pessoa que está sendo processada é um exemplo
típico. "Na justiça federal, onde tem os
crimes tributários, isso não acontece. Há uma
seletividade, como se os crimes contra o patrimônio
fossem mais graves que os crimes tributários".
Na avaliação do juiz Sérgio Mazina, aqueles que
não têm bons antecedentes e não são proprietários
acabam sendo estigmatizados. "Então, o discurso
do juiz, dos policiais, é voltado para a priorização
de quem tem condições econômicas, e para a punição
do mais carente".
Sonia Drigo resume. A lógica, na cabeça dos magistrados,
funciona assim: "vamos ver se esta pessoa
não está envolvida em outros casos, se o endereço
dela é este mesmo. É como se um morador de rua
não tivesse cidadania para responder em liberdade
qualquer processo que venha a ser instaurado contra
ele".
Casos arbitrários é que não faltam. Desde 2005,
após conseguir um habeas corpus para Maria Aparecida,
Sonia trabalha defendendo voluntariamente mulheres
acusadas de cometer pequenos furtos. O trabalho,
segundo ela, não tem fim, pois sempre aparece
um caso novo, o que evidencia o comportamento
do Judiciário. "É como se a Justiça dissesse:
'Por que ela roubou picanha e não carne moída?
Ela disse que estava com fome, mas quem garante?'.
A dúvida sempre é contra aquela pessoa. Sempre
se faz mau juízo, e não garante a ela os benefícios
que são garantidos para aqueles que têm informação,
instrução", critica.
Uma das mulheres que Sonia defende também se chama
Maria Aparecida, e foi presa em flagrante por
tentativa de furto de seis desodorantes de uma
loja em São Paulo. Condenada a 14 meses, sua pena
está próxima do fim.
A moça está na Penitenciária Feminina de Santana,
a mesma onde Eliana Tranchesi esteve presa. A
diferença é que a última teve habeas corpus concedido,
enquanto a primeira não. Uma, era acusada de sonegar
1 bilhão em impostos. A outra, tentou subtrair
objetos que não chegavam a totalizar 30 reais.
"A pena adequada não seria de privação de
liberdade, e além disso, a liberdade provisória
poderia ter vindo em favor dela 48 horas depois.
Mas não veio. E aqui também seria aplicável o
principio da insignificância", diz Sonia.
Se o caso chegar ao STF, será anulado, garante.
No entanto, a mulher já terá cumprido toda a sua
pena.
"Ninguém vai prejudicar o patrimônio de uma
grande rede de supermercados porque tentou furtar
seis desodorantes que não foram usados, o chocolate
que não foi comido, a picanha que não foi assada,
o brinquedo que não foi usado. Há crimes contra
a vida, homicidas famosos que têm o direito da
liberdade provisória garantida. Já essas pessoas
não, pois ousaram atingir o patrimônio de alguém".
Relações
perigosas
O preconceito dos membros da Justiça com as classes
mais pobres também é fruto da relação histórica
entre representantes da elite e do Judiciário,
afirmam os analistas. "No Brasil, ele é formado
por quadros da classe dominante, especificamente
no século 19. Havia a necessidade da formação
de quadros, e eles vieram da elite agrária",
lembra Mazina.
Na avaliação do Professor Titular de Antropologia
da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roberto
Kant de Lima, "em qualquer sociedade, os
membros do Judiciário serão parte das elites,
seja por sua posição original, seja por merecimento".
No entanto, ele avalia que a elite brasileira
não é cidadã, pois reivindica sempre privilégios
"como a aplicação particularizada e excepcional
da lei no seu caso, ao invés de reivindicar a
uniformidade na aplicação das normas para todos,
sem distinção, característica de qualquer República".
Desse modo, acredita, o poder econômico e as relações
pessoais assumem um peso crítico, "pois são
acionados mecanismos legais e morais que encontram
respaldo na sociedade brasileira, socialmente
hierarquizada, embora teoricamente republicana".
Outro aspecto apontado é que quando se trata de
crimes cometidos pela elite, como desvio de dinheiro,
"parece que o acusado não é uma ameaça para
a sociedade, e assim, não há um interesse para
que o processo ande rapidamente", avalia
Sonia Drigo. Ela lembra que nunca se encarcerou
tanto no país como hoje. De acordo com dados do
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do
Ministério da Justiça, em 1995, havia 148 mil
detidos nas penitenciárias e delegacias no país.
Em junho de 2007, esse número subiu para 422.373.
"Esses presos não são da elite e uma boa
parte não deveria estar preso. 30% do total poderia
estar em liberdade”.
No Brasil, é consenso entre a população que os
ricos nunca vão presos, e que cadeia é coisa de
pobre. "Aqui na justiça estadual [de São
Paulo] não temos a competência de investigar crimes
financeiros, colarinho branco. Eles correm na
justiça federal. Aqui temos roubo, tráfico de
entorpecentes", relata a juíza Kenarik Boujikian
Felippe. "Mas qual é o trabalho que a policia
faz com eles?. O sistema policial funciona só
para quem é pobre. Aquele que ganha rios de dinheiro
eu não vejo, não sei quem é esse cara. Esses réus
nem chegam aqui. Eles estão na esfera federal.
E a policia sempre funcionou para isso, e acaba
se refletindo.
Para Sérgio Mazina, presidente do Ibccrim, o principal
motivo de haver poucos representantes da elite
processados e condenados é fundamentalmente político,
mas é resultado, também, de um sistema falho.
"Não temos uma policia preparada para investigar
esse tipo de crime, ela é preparada para investigar
e prender aquele que está te assaltando no meio
da rua com revólver, querendo pegar sua bolsa
ou celular".
Já para ir atrás de crime cometido pelos representantes
do poder econômico, segundo Mazina, não há estrutura,
pessoal, equipamentos, e sequer formação para
entender o delito que está sendo praticado, pois
ele é, geralmente, complexo, por mexer com os
aspectos tributário e financeiro. Assim, o sistema
"se resume a fazer intervenções espetaculares,
sensacionais, que acontecem em momentos da mídia,
mas que são inconsistentes".
O presidente do Ibccrim destaca que a punição
precisa estar assentada em cima de provas. "Não
adianta sair dando sentenças de um século para
todo mundo, porque ela não vai subsistir e a justiça
vai ficar desacreditada. Esse é o grande perigo".
No caso de Maria Aparecida e Gisleine, isso já
aconteceu. “O Judiciário precisa ser modificado.
Tem que se tratar todos igualmente”, sentencia
Gisleine. Já Maria Aparecida diz que a perda do
olho abala muito sua vaidade: “Se pelo menos eu
tivesse saído com a minha vista, nem precisava
de nada mais”. Você se sente injustiçada? "Sim,
muito", responde, escondendo o rosto, lágrimas
escorrendo.
Para
ler mais sobre a crise no judiciário e muitas
outras matérias da Revista Caros Amigos procure
a edição de maio, já nas bancas ou então assine
a versão digital Caros Amigos
|