"Seu
olho verde faiscava de brabeza ou transbordava
de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava
o meu mundo em ordem. Sua risada era aberta e
franca, seu abraço era cálido, sua
alegria, generosa"
Nesta
coluna homenageio meu pai Arthur, que morreu
quando eu tinha 35 anos, e de quem, 35 depois,
ainda recordo todos os dias, pelo seu legado
de carinho, justiça, integridade e proteção,
que até agora me dá força
quando preciso dela (preciso muitas vezes).
As propagandas em torno do Dia dos Pais, se
irritam pela comercialização (para
quem deseja isso) em torno do afeto, servem
de lembrete a quem anda esquecido do seu pai.
Então
tenho lembrado com mais intensidade do meu,
que era severo e terno. Seu olho verde faiscava
de brabeza ou transbordava de afeto. O rumor
de seu passo no corredor botava o meu mundo
em ordem. Sua risada era aberta e franca, seu
abraço era cálido, sua alegria,
generosa. Tinha momentos de melancolia, em que
fitava um ponto distante longo tempo sem falar.
Seu amor pela família foi talvez seu
traço mais marcante. Ensinou-me o nome
das árvores do jardim e os cuidados com
elas, para que dessem frutas doces. Transmitiu-me
a noção do sagrado das coisas
e das pessoas. Gostava de tranqüilidade,
meu pai Arthur. Recusou sistematicamente os
convites para deixar nossa pequena cidade e
assumir cargos importantes. Era atento e compreensivo,
ajudou fugitivos da II Guerra, levava cobertores
ou remédio aos pobres, aconselhava amigos
e desconhecidos que vinham lhe pedir orientação.
Lembro-me do que relatou alguém que o
procurou em casa, e ele, interrogado sobre sua
vasta biblioteca, apontou os livros e disse
com simplicidade: "Eles são meus
amigos".
Era
também exigente, meu pai Arthur. Aborrecia-se
com meu boletim invariavelmente medíocre,
porque eu não gostava de estudar: queria
ficar em casa, lendo em meu quarto ou debaixo
de alguma árvore, e achava as regras
de disciplina da escola antes cômicas
do que respeitáveis. Além de negligente
na escola, em casa não conseguia ser
a menina prendada que minha mãe desejava.
Não
podia competir com suas sobrinhas ou filhas
de amigas, num tempo em que ser prendada era
importante (para mim, era bobagem): meus bordados
saíam tortos, minha incapacidade de arrumar
a cama era patética, meu horror à
cozinha era vergonhoso, eu respondia mal à
minha mãe, ou lhe mostrava a língua.
Era um desastre, e me sentia assim. Quando as
queixas de mãe e professores se tornaram
excessivas, ele me pôs num internato.
"Para o seu bem", ele disse. Não
esqueço a dor daquele dia e dos outros,
nem a minha gratidão quando, dois meses
depois, em uma visita, anunciei que se ele não
me tirasse dali eu morreria, e ele me levou
para casa. Por essa, e tantas outras coisas,
dediquei-lhe especialmente um de meus livros,
dizendo: "A meu pai Arthur, para quem eu
não era só uma criança:
eu era uma pessoa". Ainda falo com ele,
recorro a ele em minhas aflições,
pedindo que, como fez em vida, me ajude em minhas
trapalhadas. (Não sei como, mas ele ajuda.)
Nele,
antecipando o Dia dos Pais que se aproxima,
homenageio todos os pais que não vão
ter o carinho dos filhos pequenos ou adultos,
nem um telefonema alegre, nem um almoço
ruidoso, nem mesmo um recado. Homenageio os
pais que ficarão sozinhos fingindo que
não faz mal, que filho é assim
mesmo, que a vida é assim. Não
é assim. Em meu pai Arthur, homenageio
os pais que não puderam estar sempre
junto de seus filhos porque, longe, precisavam
garantir o seu sustento; que foram relegados
quando não tinham mais dinheiro ou saúde;
criticados quando quiseram buscar alguma felicidade;
ou que, sem entender, foram declarados dispensáveis
e desimportantes.
Não
posso esquecer aqui aqueles pais que perderam
um filho ou filha, na dor que não se
cura com nada. Mas penso também nos pais
alegres, nos pais carinhosos, nos pais protetores,
parceiros, guerreiros, nos pais que têm
sorte, e que nesse dia especial receberão
abraços, telefonemas, torpedos, churrascos,
conversas, sorrisos ou mesmo um bilhete em letra
infantil – como aqueles que tantas vezes,
na minha distante infância, deixei no
bolso do paletó ou no prato do café-da-manhã
de meu pai Arthur.
Lya
Luft - escritora | 6 de agosto, 2008 Veja