Não sei bem ao certo, mas eu creio que agora
a pouco eu devo ter completado a minha décima
incursão ao filme “O auto da compadecida”;
obra baseada no livro de igual nome, do brilhante
Ariano Suassuna.
O sucesso nacional em todos os sentidos mostra a história
sofrida de Chicó e João Grilo pelos
dissabores nordestinos no início do século
XX em meio à fome, seca e homicidas das volantes
e cangaceiros, onde após uma grande desgraça
numa cidadezinha do interior nordestino (Taperoá),
centenas de pessoas que morreram foram se encontrar
com Jesus Cristo e tiveram o fadário de serem
julgados no céu, na presença de Nossa
Senhora como advogada e do próprio satanás
como o inquisitor mor e serem, ou absolvidos devido
ao sofrimento terreno ou condenados ao purgatório.
Minha crônica de hoje é uma alacridade
ao povo nordestino, o povo sertanejo, o povo magnífico
que mais sofre em todo Brasil e que vive apostatado
a própria sorte e muitas vezes a própria
desgraça de sempre.
Meus pais são nordestinos, eu sou nordestino,
meus filhos, irmãos, tios e primos são
nordestinos e eu jamais renegarei a minha origem nordestina,
por mais que me paguem ou me influenciem culturalmente;
minha identidade nordestina consegue ser mais forte
do que a minha identidade de brasileiro.
Nasci numa cidade grande, Feira de Santana e seus
quase 550 mil habitantes, maior inclusive do que muitas
capitais brasileiras como Vitória, Florianópolis
e Maceió; uma metrópole diante da maioria
de lá e esta cidade, que carinhosamente é
chamada de “Princesa do Sertão”
é o portal de entrada para o semi-árido
do Brasil. Qualquer um que venha dos estados do Sul
e Sudeste, praticamente necessitam passar por Feira
de Santana para poderem adentrar de fato no Nordeste,
pois até ela, o clima é temperado e
úmido, inclusive favorável a culturas
agrícolas como tabaco de excepcional qualidade,
mas partindo dali, até os cafundós dos
limites da Amazônia, o que se vê é
seca, fome, sede, miséria e um povo alegre;
um povo de bem que vive mal; um povo em sua maioria
honesto e acolhedor; o povo sertanejo.
Feira de Santana está para o Nordeste como
São Paulo está para o Brasil. As BRs
101, 116, 110 e 324, quatro grandes rodovias de ligação
nacional, possuem grandes ramificações
na cidade e o resultado disso é uma grande
miscigenação de povos de todo Brasil
que passam por lá, vêem-na como uma grande
e pujante cidade e ficam para tentarem a sorte.
Meu avô, por exemplo, único vivo entre
meus avós, que nasceu em 1910 e vive até
hoje na mesma casa, que foi de seu pai, é um
destes sertanejos valentes que ajudaram na preservação
dos costumes. “Seu Judicael Pamponet Pires”
é um daqueles homens que plantou e sempre colheu
e viu todas as transformações possíveis
em suas terras; teve oito filhos, inclusive meu pai
e viu morrer dois ainda pequenos, mas nada o fez desistir
de cuidar de suas pequenas e humildes terras, com
criação de ovelhas, boi de corte, vacas
de leite e sempre um roçado limpo para poder
plantar seu feijão, abóbora, maxixe,
milho e melancia e foi desta forma que ele criou seus
outros filhos para também se orgulharem de
ser daquela terra, daquele lugar; daquele pedacinho
de chão, pequeno, porém cheio de orgulho
de estar pago com os rios de suor de seu rosto.
Em minha infância, me acostumei a passar as
férias de final de ano na velha Fazenda Bom
Sucesso em companhia de meus avós e de dois
tios, irmãos de meu pai e era comum a presença
de muitos outros primos também de férias.
Ainda quando eu podia desfrutar da companhia de minha
avó Dete, eu via que as pessoas que moravam
nas vizinhanças reclamavam da falta de chuva,
ou louvavam a Deus quando a mesma chuva que insistia
em não vir chegava de forma assustadora, inundando
tudo e recolocando a fé de todos no ápice
para mais um ano de lavoura.
Naquela época, década de 70, eu já
notava sem muito espanto que a “nossa”
fazenda, que fica entre duas cidades (Baixa Grande
e Ipirá), contava com uma flora agradável
e uma fauna rica, com muitos bichos raros ainda possíveis
de serem fotografados e mesmo nos períodos
de estiagem, estes bichos que migravam para locais
menos castigados, acabava voltando as suas origens;
da mesma forma que o próprio povo, e hoje o
que vejo é desolador, assustador, miserável
até.
Sem querer eu tive as minhas primeiras aulas de sociologia
e por pouco não me transformei num antropólogo
e se não fiz na forma acadêmica, com
certeza me doutorei nestas áreas pela faculdade
do mundo, pois convivi com tantas diferenças,
tantos costumes que não pude transportar para
meu cotidiano. Tudo naquele lugar era diferente daquilo
que eu vivia na Capital onde morei na minha adolescência
e aqueles meses de férias, ano pós ano
somente me ajudou a formar meu caráter e minha
personalidade política, acreditando inclusive
que o Estado de Direito faria algo de melhor para
meu povo.
Comparar os “Brasis” que existe dentro
deste Brasil é algo enlouquecedor; se existe
pujança e fartura no sul e sudeste, pessoas
com paletós e gravatas indo e vindo de seus
escritórios ou plantações intermináveis
de soja, milho, feijão e outras monoculturas,
no Nordeste há tudo ao contrario. As pessoas,
mesmo aquelas que vivem nos grandes centros ou nas
regiões costeiras, são mais acostumadas
ao sorriso e a humildade, talvez herdada do povo sertanejo
que vive ali pertinho e quanto às plantações
intermináveis, no Nordeste é comum se
ver gado morrendo, rios secando e a única coisa
que se vê ao longo de um horizonte são
os mandacarus e as pedras.
O povo nordestino não sabe o que é financiamento
de plantio, colheitadeira, adubadeira e o arado, este
ainda é possível se vê na tração
animal. Irrigação é mais comum,
mas nada de gruas enormes molhando a plantação,
irrigação na maior parte do Nordeste
é feita por gravidade em pequenos córregos
que molha menores ainda plantações de
subsistência. Ninguém sabe o que é
esta tal de tecnologia; a televisão começou
a chegar no final da década de 80 e ainda existem
comunidades, muitas comunidades sem conhecer a energia
elétrica, muito menos água encanada.
Silagem e piscicultura são palavrões!
No Nordeste, o povo acorda cedo, muito cedo, antes
mesmo de o sol sair, comem um pouco de qualquer coisa
e rumam para alguma frente de trabalho; não
fazem lanche e ficam debaixo do sol escaldante até
o meio dia para então fazerem uma pausa de
20, 30 minutos, quando desembainham alguma cuia com
feijão, farinha e carne se a sorte estiver
do seu lado naquele dia. Come tudo isso acompanhado
de água de moringa e alguns torrões
de rapadura. Dizem que este composto ajuda a segurar
a “onda” até a noite. Depois desta
alimentação, eles voltam ao trabalho
e chegam em casa por volta das sete da noite, quando
se banham e acendem uma vela, não para o santo
protetor, mas para iluminar a casa de barro batido.
No jantar, quando também se tem sorte, vê-se
leite com farinha que se faz um pirão delicioso,
com lascas de carne e pão com café e
assim, eles ficam até o dia amanhecer e uma
outra jornada igual para encarar. No Nordeste não
se tem muita distinção entre uma quarta-feira
e um domingo; o nordestino raramente pára de
trabalhar no dia 1º de janeiro ou 7 de setembro,
mas Natal e Finados é coisa importante e sagrada
e ninguém quer trabalhar nestas épocas;
outra coisa é muito comum no Nordeste sofrido;
24 de junho é festa de São João
(aniversário do meu pai e dia da morte de minha
avó) e na sexta-feira santa, se não
tiver peixe ou galinha no terreiro, eles ficam jejuns.
Acreditam que não comendo carne vermelha estão
respeitando o corpo de Cristo e estão sempre
dizendo: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Nos dias de festa junina, as casas mais cheias de
gente abrem suas portas com amendoim cozido, canjica
e uma fartura de licores de frutas para receberem
visitantes locais que vislumbram fogueiras na frente
das casas e em algumas, pode-se ouvir algum fole tocando,
acompanhado de um triângulo e zabumba, animando
um forró gostoso de “pé-de-serra”
até o dia amanhecer, com gente alegre na sala,
exaltando a chance divina de estarem vivos em mais
um ano. O São João nordestino é
como se fosse o reveillon para o resto do Brasil e
lá é feriado santo, aliás, o
mês de junho é sagrado, com festas para
São João, São José e São
Pedro, mártires da Santa Sé.
Infelizmente, como no resto do Brasil, os brancos
possuem mais chance que os negros e as mulheres menos
chance ainda de ascensão profissional, infelizmente
ainda é mais comum lembrarmos das senzalas,
mas há algo que não existe no resto
do Brasil, que é o respeito à vida.
Negros e brancos vivem em paz e se os negros não
conseguem ser senhores fazendeiros é por conta
de uma cultura generalizada imposta há séculos
e perpetuada até os dias atuais. Na roça
não há mendicância ou lamúrias
sociais e se não se paga o justo imposto pelas
leis vigentes, pelo menos, mesmo nas longas estiagens,
há algum trabalho por fazer, basta procurar.
Quem se desespera e se retira encima de um pau-de-arara
para as grandes cidades, infelizmente vêem a
morte e a humilhação de perto e como
dizem os sertanejos, “o diabo vive nas capitais”.
Quem se retira sem o devido provimento financeiro,
se arrepende antes de completar um ano e quer voltar,
mas não pode; seus destinos estão selados
e suas vidas entregues a meia dúzia de exploradores
que sugam seus sangues até a morte.
Eu vivi tudo isso de perto e via quantas pessoas saíam
de seus pedaços de chão e choravam na
ida e nas poucas voltas pelo arrependimento; vi a
velha “Bom Sucesso” com vaqueiros, cozinheiras,
arrumadeiras e lavradores empregados e mesmo hoje,
sem nada disso, com um certo declínio do poder
de compra, não observo meus tios lamentarem
a ponto do choro ou meu avô, com seus 97 anos
e ainda andando, reclamar que um dia lhe faltou um
prato de comida ou água para matar-lhe a sede.
Eu fui testemunha ocular que naquela fazenda velha,
centenária, já houve geada tão
forte que os tanques de combustível dos carros
petrificaram devida a baixa temperatura.
Posso não ver mais a casa cheia de gente comendo
durante as refeições ou tangendo o gado
pela manhã e à tardinha; posso não
ver veados correndo no quintal, emas comendo no jardim;
posso não mais saber o que é um cedro
ou um jacarandá; posso não mais enxergar
a cobra coral, raposa, micos ou porcos do mato; posso
não poder ver meu avô chegar aos 100
anos e comemorar com ele todo este legado cultural
que nos deixa e culpo em parte disso a tecnologia
e o avanço do progresso pelas matanças
de animais e desertificação do solo,
mas ainda consigo sim encontrar milhares de pessoas
que não trocariam o calor do Nordeste pelo
frio do sul ou os carnavais das cidades praianas.
É uma pena eu estar envelhecendo e não
poder ainda ver o acesso fácil da justiça
em lugares remotos do sertão ou ainda o patronato
tão prometido de alcaides eleitos à
custa de tantas promessas de ajudas e auxílios;
é uma pena ainda ver que o asfalto do progresso,
este sim ajudaria os carros das fazendas, mas estão
distantes pelo menos três léguas (dezoito
quilômetros) das propriedades mais pobres e
nos poucos riachos salobros que restaram ainda não
foram capazes de construir pontes que resistam aos
períodos de cheia; é uma pena ver a
antena parabólica que alimenta a TV de sinais,
mas que aquela TV não possui alimentação
de energia elétrica ou que ainda existam tantas
geladeiras movidas a GLP; é lindo e poético
ver a varanda da “nossa” fazenda iluminada
pelos candeeiros de querosene, mas triste saber que
se preciso ir à noite num sanitário,
terei que primeiro achar o fósforo ao invés
de uma tecla de interruptor, ainda assim é
melhor do que não poder pagar a conta no final
do mês da companhia elétrica.
Eu lembro que tínhamos alguns tanques de água
represada que nos servia para o abastecimento e também
nos fornecia traíras e tilápias; que
nos finais de semana tínhamos carne de carneiro
cozida e assada ou doce de leite e coalhada no café
da manhã; lembro que comíamos cuscus
de milho com ovos e café torrado e moído
no quintal, assim como também lembro que meu
avô jamais deixou que aprisionássemos
animais ou fossemos cruéis com eles e se algum
colono por ventura vendesse passarinhos em gaiolas,
era com certeza para complementar a renda e colocar
mais comida na mesa.
Hoje tudo mudou e a cultura sertaneja está
cada vez mais rara de se ver; os filhos dos vaqueiros
buscam os computadores e os filhos dos coronéis
agora são doutores com diplomas pendurados
num consultório ou numa banca de jurisconsultos;
noto que os cavalos já não causam mais
euforia nos jovens e que os jumentos são desprezados
e tidos como uma praga; que não existem animais
para delírio dos olhos ou árvores que
produzam toras; noto que os oratórios deram
lugar aos novos ritos das novas religiões e
não me chegará com muita surpresa, se
em alguns anos ao invés de jargões comuns
e palavras viciadas de um português desconhecido,
eu ouça dos modernos sertanejos as palavras
que vejo nos chats imbecis adotadas pelos jovens néscios
que não pesquisam, muito menos produzem algo
de valor cultural.
Mas os poucos sertanejos que ainda resistem precisam
ainda mostrar ao resto do Brasil que aquele cantinho
chamado de sertão, que envolve os nove estados
do Nordeste, parte de Minas Gerais e um restinho de
Goiás e Tocantins merece ser lembrado eternamente
pelos historiadores brasileiros que terão a
responsabilidade de contar aos futuros povos que foram
eles, os sertanejos, quem inventaram o trabalho duro,
a honestidade, o acolhimento pelo calor humano, a
compreensão e a bondade.
Eu me orgulho de ser nordestino, de ser filho de nordestinos,
de ter todas as minhas raízes no sertão
nordestino e gostaria que meus filhos que moram no
Nordeste, Victor e Henrique Segundo pudessem um dia
também, em consciência plena, se orgulharem
e sentirem tudo isso que sinto, pois nosso povo, além
de tudo, é bravo histórico e mesmo sem
querer, deixarão sua marca por pelo menos mais
mil anos!
Para este 1º de Maio, dia mundial do trabalho
e aqui no Brasil, Dia Nacional de Lutas, quero deixar
registrado todo o meu respeito e minha eterna admiração
pelo Nordeste do Brasil, pelos nordestinos trabalhadores,
pelos sertanejos lutadores, por tudo que já
conseguiram deixar de aprendizado para mim; quero
deixar registrada a minha reverência ao meu
pai (“seu” Humberto) e ao meu avô,
aos meus tios e tias, que sempre me ensinaram que
eu devia sempre ter orgulho de ser um sertanejo e
se eu jamais pus as mãos num cabo de enxada,
talvez seja por isso que em alguns momentos eu tive
hibridez de atitude.
Saudar também a presença marcante na
história dos sertões enormes que existem
dentro do sertão brasileiro como as figuras
de Antonio Conselheiro, Ruy Barbosa, Clóvis
Bevilácqua, Virgulino Ferreira da Silva (Lampião),
Patativa do Assaré, Ariano Suassuna, Anísio
Teixeira, Maria Quitéria, Enfermeira Ana Nery,
Paulo Freire, Luiz Gonzaga, Coronel Horácio
de Matos, Miguel Arraes, Padre Cícero, Irmã
Dulce, Chico Anísio, João Ubaldo Ribeiro,
Zumbi dos Palmares, Marechal Deodoro Da Fonseca, Marechal
Floriano Peixoto, Castro Alves, Euclides da Cunha
(não era nordestino mas foi adotado como tal)
e de tantos outros vultos e anônimos que empunharam
a bandeira invisível daquela terra, brigando,
estudando, pesquisando e pacificando de modo tão
importante para que a história jamais esquecesse
de seus atos bravos e heróicos.
Para aqueles que por ventura lerem esta crônica,
lembrar-se que lá, nos nove estados nordestinos,
existem irmãos sofridos que muitas vezes passam
fome e sede, mas que raramente aquele povo, o sertanejo,
se desespera e sai para roubar, matar ou enganar pessoas
e que sempre precisarão de nossas ajudas, sempre,
sempre...!
Viva o povo nordestino! Viva o povo sertanejo! Viva
o sertão do Brasil!
Texto
e Foto:
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
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