Moradores de Cuiabá fazem fila na porta dos fundos de
açougue para receberem doações de ossos com restos de
carne
(Foto: Reprodução / Redes sociais)
Famílias fazem
fila para receber doação de ossos com
restos de carne em Cuiabá
A
distribuição dos ossos começa às 11h, às segundas,
quartas e sextas
19/07/2021
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Mara
Siqueira, 35, costuma acordar por volta de 5h30
e começa uma peregrinação em busca de doações
para alimentar os sete filhos. Três vezes na semana,
ela é uma das dezenas de pessoas que se enfileiram
em frente a um açougue no bairro CPA 2, na periferia
de Cuiabá, para conseguir levar para casa pedaços
de ossos doados pelo estabelecimento.
Trata-se dos restos do processo de desossa do
boi. Nesses pequenos pedaços, ficam resquícios
de carne, que se tornam prato principal na casa
de cuiabanos em situação de vulnerabilidade financeira
e insegurança alimentar.
A distribuição dos ossos começa às 11h, às segundas,
quartas e sextas. Na manhã de quarta (14), os
moradores do entorno diziam ter chegado com duas
horas de antecedência.
Mara
mora no bairro Planalto, a mais de três quilômetros
do açougue Atacadão da Carne. Ela aguardava no
local com três vizinhas. Todas têm filhos e afirmam
que não podem se dar ao luxo de deixar de ir ao
estabelecimento, já que isso significaria não
ter o que comer em casa.
Elen
Cristina de Souza, 17, também aguarda com Mara.
Ao lado dela, o filho, em um carrinho de bebê,
parece atento ao que está acontecendo. A jovem
afirma que o ossinho é parte da maioria das refeições
na casa dela.
Sem emprego nem renda
Sentadas na calçada, onde mais de 50 pessoas tentavam
desviar do sol quente do meio-dia em Cuiabá, Renildes
Pereira da Silva, 53, e Ana Maria de Jesus Araújo,
39, estava no início da fila. Renildes diz que,
há muito tempo, a carne grudada nos ossos que
sobram no açougue é a única que ela tem condições
de comer. Fazendo anotações em um caderno, fala
que está mais difícil sobreviver sendo pobre no
Brasil. Ela mora com uma neta e com dois filhos,
que fazem bico como ajudantes de pedreiro, no
bairro 1º de Março, perto do CPA 2. Diz não saber
ao certo qual a renda da família.
Para Ana Maria, que está desempregada e vive com
R$ 375 do auxílio emergencial, a fila de moradores
em busca de ossos é um reflexo da situação econômica
do Brasil.
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Sem emprego nem renda - Ana Maria de
Jesus Araújo, à esq., e Renildes Pereira da Silva
estão desempregadas
Imagem: Bruna Barbosa Pereira/UOL
Aumento
da fome
Luciano André Barros Alves, 45, já teve vários
empregos, de vigilante a churrasqueiro, mas ultimamente
tem tido dificuldade até para conseguir pequenos
bicos. A mulher dele também está desempregada
desde que teve um problema de saúde. A fome chegou
à casa de Luciano, a mulher e os três filhos,
no bairro Três Lagoas, e há sete semanas ele marca
presença na fila para conseguir pegar um pouco
dos ossinhos. “Faço bico as vezes. Consigo R$
50, não dá para nada. Se não fosse esse açougue,
esse pessoal todo aqui na fila não teria o que
comer. Tem muitos com cinco, seis filhos, é difícil
“, diz.
Ele também recebe doações de frutas e verduras
de outros estabelecimentos na região.
Mais de 500 quilos de ossos
por dia
Funcionários do Atacadão da Carne informam que
há mais de dez anos as doações de ossos são realizadas
para os moradores sem renda da região, mas dizem
que a fila aumentou nos últimos tempos. Por dia,
são quase 500 quilos e eles garantem que sempre
“dão um jeito” para que ninguém volte para casa
sem um pouco de proteína. Açougues da região,
que vendem o produto, cobram até R$ 10 o quilo.
Para Maurício Munhoz, professor de economia da
Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso),
a fila de moradores em busca de ossos escancara
a contradição de um estado que é referência no
agronegócio e na criação de gado.
“Mato Grosso tem o maior rebanho bovino do país,
com cerca de 32 milhões de cabeças de gado. São
aproximadamente dez cabeças de boi por habitante.
Seria lógico que pelo menos o preço da carne fosse
barato aqui, mas acontece o contrário”, diz. Com
o dólar alto, explica, frigoríficos preferem exportar
a carne a vender no mercado interno, para ganhar
mais. “Poucos grupos detêm o poder no mercado
de carne no Mato Grosso. São cerca de 25 frigoríficos,
que pertencem a de oito a dez grupos. Ficamos
[a população] como segunda opção”, afirma.